O câncer da toga


Uma mazela física, como um câncer, pode ser silenciosa e indolor por um bom tempo, enquanto, em meio à inépcia da vítima, corrói o organismo de forma severa e, a longo prazo, fatal. Quando as dores começam a ser mais sentidas o paciente é induzido a tomar uma atitude mais expressiva: pode-se optar pelo uso de analgésicos, para suavizar os efeitos do mal, ou mesmo por um tratamento mais consistente e desgastante contra o mal em si. Assim como na medicina, existem cânceres sociais, que até certo ponto podem ser discretos, enquanto fortalecem seu potencial de danos, mas, quando se consolidam, comprometem visceralmente a configuração do Estado Democrático de Direito mediante atos absurdamente afrontosos que, pela recorrência subestimada, ganham ar de normalidade, sendo suficiente para a cura não mais o uso dos analgésicos ilusórios do positivismo jurídico, que injeta altas doses de conformismo ao rememorar o segundo artigo da Constituição Federal ("São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário"), mas apenas um tratamento mais consistente, que passa por assumir a gritante desfiguração do ambiente institucional e pela utilização dos instrumentos legítimos mais eficazes, como a pressão popular e a destituição constitucional dos inaptos para os cargos importantes da República.

O Supremo Tribunal Federal, última instância do Poder Judiciário e incumbido de ser o guardião máximo da Constituição Federal, tem adotado um modo de agir que extrapola sistematicamente suas atribuições, chegando a, por diversas vezes, legislar, como nos casos da decisão que legalizou o aborto de fetos anencéfalos, em 2012; do reconhecimento legal da união estável entre pessoas do mesmo sexo, em 2011, abrindo precedente para a posterior resolução do Conselho Nacional de Justiça, em 2013, que obrigou os cartórios a realizar "casamentos" entre pessoas do mesmo sexo; do direito à mudança do nome e do gênero no registro civil para transgêneros, em 2018; e do reconhecimento da multiparentalidade, em 2016, permitindo o registro de dupla paternidade (pai biológico e pai socioafetivo) para uma mesma pessoa. Além de tais decisões formais proferidas pelo órgão, também há uma série de pautas em espera, que caberiam apenas ao Poder Legislativo, como a descriminalização do porte de maconha; criminalização da "homofobia", um termo que, cientificamente, denota patologia traduzida no ato de ter aversão violenta a homossexuais, mas considerado pela Corte como mera divergência ideológica à prática homoafetiva; e legalização do aborto em todos os casos até o terceiro mês de gestação. Ademais, ainda tenta atribuir para si poder investigativo, por meio do inquérito ilegal do Ministro Dias Toffoli para investigar críticas e possíveis notícias falsas contra membros da Suprema Corte e esboça sanções censuradoras para com seus críticos, como na determinação do Ministro Alexandre de Moraes para bloquear contas da internet que estivessem criticando o STF. Esta configuração demonstra ativismo judicial explícito e total descomprometimento para com as normas básicas do Estado brasileiro, que, por meio dos desmandos inconstitucionais, também profere posicionamentos completamente contrários à população do país, avessa a mudanças revolucionárias no entendimento de estruturas e conceitos tradicionais da civilização humana, como família, classificação dos sexos, trato para com patrocinadores do narco-tráfico, direito à vida, etc.

O recente entendimento do Supremo a respeito da prisão em segunda instância, classificada como inconstitucional por 6 votos a 5, possui pífio amparo lógico e um embasamento jurídico isolado, baseado na letra fria do artigo 283 do Código Penal ("Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva."), longe da unanimidade técnica, que não é alcançada por, entre outros argumentos, não haver efeito suspensivo em Recurso Especial ou Recurso Extraordinário, não dizendo respeito aos efeitos produzidos pela decisão recorrida; os recursos cabíveis da decisão de segundo grau ao STJ ou STF não se prestarem a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito; e a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não comprometer o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade. A jurisprudência do Brasil era de execução de prisão após condenação em segunda instância desde 1941, abrangendo até mesmo os períodos que antecederam a Constituição de 1988. Em 2009, o STF modificou o entendimento, colocando a prisão como algo a ser determinado em última instância e, em 2016, retornou ao entendimento que vigorou por décadas no país. E quando se considera a jurisprudência internacional, constata-se que a prisão nunca é realizada após uma terceira instância (em 193 das 194 nações da ONU), tendo boa parte dos códigos penais dos países determinando prisão já após condenação em primeira instância.

Pela ótica da análise lógica percebe-se mais um contrassenso, neste caso, bastante básico e elementar: propor que toda e qualquer prisão fora dos teores preventivo, flagrante e temporário seja determinada apenas em última instância é uma impossibilidade física, em razão da imensa quantidade de processos e do diminuto aparato do órgão superior. Isso também contraria um dos princípios fundamentais do Direito: Ad impossibilia nemo tenetur (Ninguém será obrigado ao impossível). Por último, tal entendimento proferido pelo STF não encontra sentido nem mesmo na seara estatística, que mostra que apenas em 0,62% dos casos há absolvição do réu após segunda instância.

O modus operandi da Suprema Corte, gerador contumaz de insegurança jurídica, mostra uma notória pré-disposição à leniência e à impunidade, sempre trabalhando na direção de suavizações de pena, absolvições e lentidão para julgar. O último evento chamativo em que foi protagonista é apenas mais um em que optou pela interpretação mais favorável à impunidade. Isso gera o dever de desrespeitá-lo abertamente, por estar deteriorando criminosamente o Estado Democrático de Direito. O próprio mecanismo pelo qual os membros dessa instituição são constituídos é um contrassenso absoluto, pois é a escolha, pelos potenciais réus (políticos, com foro privilegiado), dos juízes que poderão julgá-los. Uma nação pode se tornar uma ditadura não apenas por meio de golpes explícitos e violentos, mas também pela corrosão contínua do ambiente institucional, de dentro para fora, pelos próprios arautos da democracia. As instituições só podem ser consideradas de acordo com o rito democrático quando suas atitudes assim as credenciam, caso contrário, merecem desprezo e desobediência.


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