Por amor à humanidade


Segundo o escritor soviético Maxim Gorki, as pessoas não despertavam em Lênin quase nenhum interesse, pois ele pensava somente em “massas, partidos, estados”. Quando Gorki, amigo do revolucionário russo, encaminhava pedidos de clemência de condenados, Lênin se quedava realmente perplexo, pois não podia entender como o escritor tinha a pachorra de fazê-lo perder tempo com bobagens. 

Foi Stálin, correligionário de Lênin na desgraça do comunismo, quem expressou uma verdade psicológica essencial, ao dizer que a morte de um só é uma tragédia, enquanto a morte de milhares é estatística. A mente humana procede por individuações, fazendo-nos destacar exemplos mesmo para explicar acontecimentos coletivos. Se penso nas crianças famélicas de um continente distante, comovo-me concebendo psicologicamente uma só delas (ou umas poucas) como representativa das muitas outras. 

Esta é, porém, uma constatação psicológica, não uma gradação moral. Nesta escala, por óbvio, duas crianças mortas de fome pesam moralmente mais que uma só. 

Reduzir a moral à experiência psicológica é um componente essencial à direção das massas. Hitler foi um mestre nisso. Encarando os indivíduos não como pessoas, e sim como peças de grupos sociais, ele, como Lênin, percebeu um fato bastante tematizado pela sociologia contemporânea – que hoje, como o ovo de Colombo, nos soa patentíssimo: o homem é mais eficazmente influenciado pelo vínculo de equipe; enquanto os sujeitos se sentissem bem instalados nos seus respectivos grupos, entendeu o Führer, muito mais dificilmente cairiam sob sua influência. 

A estratégia hitlerista consistia, então, de dois momentos. O primeiro era a desarticulação dos grupos, inoculando mentiras e rivalidade entre os adversários, desorganizando comícios e aparentando alianças, com o fito de desmoralizar os comandantes opositores. Este método foi aplicado com sucesso sobre nações inteiras, como Áustria, Romênia e Bulgária. A força só era empregada após o esgotamento das “possibilidades de desmoralização”; no segundo momento, o indivíduo, a partir daí isolado de seus laços – sem reconhecimento, amizade, segurança e confiança –, comportava-se, explica Karl Mannheim, “como uma criança que se extraviou ou que perdeu a pessoa amada”, apegando-se a quem quer que se apresentasse (e desnecessário apontar quem oferecia a mão amiga ao sujeito desguarnecido...). A cereja do bolo da técnica nazi entrava em ação: desmantelar-lhe a consciência moral em nome do juízo coletivo mediante a combinação de promessas e ameaças. Consolidava-se a forma mentis do soldado nacional-socialista. 

Muitos experimentos de psicologia social – nomeadamente, por exemplo, o de Milgram (cinematografado a seu modo na película de Stanley Kramer, O Julgamento de Nuremberg, de 1961) – posteriormente verificaram tudo isso. Quando se encontra um meio de exercer nosso desejo por violência represado, nenhuma força meramente humana pode nos segurar. Lembro-me da história da moça que foi espancada e morta num cerco de rua, porque as pessoas “ouviram dizer” que ela “mexeu com uma criancinha”. A investigação apurou que a denúncia fora falsa. Talvez a população tenha agido assim por revolta contra a gritante impunidade no Brasil... 

As redes sociais impulsionaram (consciente ou inconscientemente) essa tática de dessensibilização da consciência. Como um bem público nas nossas repúblicas, o crime em nome do coletivo não é de responsabilidade de ninguém. A palavra dos perfis virtuais é duma voz sem rosto contra um olhar igualmente apagado. 

Faltava a Lênin (se ele fosse capaz de assimilar), como aos internautas, aquela observação que Burke fizera sobre Rousseau: o genebrino amava a humanidade e desprezava os homens. 

Afinal, não é facílimo amar as crianças africanas?


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