Sereis como deuses: o muito perdido que se deve recuperar

Pecai e sereis perdoados, por Aldo Fornazieri - GGN

Em 399 a.C., Sócrates (470-399) foi condenado pelo tribunal de Atenas a beber cicuta. O registro (pelo menos ficcionado) de seu julgamento foi feito por Platão (427-347 a.C.), seu discípulo. Este escrevia numa sociedade em declínio político, e se perguntava como o homem pode viver na polis à revelia da política (dando lugar em seguida ao problema da necessidade de viver sob um governo). O mesmo problema enfrentou Aristóteles, autor do primeiro grande tratado filosófico ocidental sobre o tema. 

No plenário, Sócrates se destacou pela grandeza moral em face dos quinhentos e um juízes da Assembleia dos Heliastas. Ali, com efeito, abriu-se historicamente uma fratura entre a filosofia e a política abandonada à (má) retórica, como uma reedição dos confrontos públicos entre o mesmo pensador ateniense, que queria dignificar a atividade política, elevando-a pelo esforço científico, e o relativismo dos sofistas; aquele condicionava o discurso à verdade; esses últimos acomodavam a “verdade” às conveniências, à utilidade. Numa palavra: Platão parecia querer apontar, como se diz, a insuficiência da simples (má) retórica enquanto instrumento exclusivo de manutenção social. Era preciso o norte da verdade. 

Na arena política mundial de hoje, os sofistas venceram. Ludibriados pela própria fraqueza pessoal -- os homens sempre tiveram uma difícil relação com a verdade -- e pela pressão externa nutrida por um influxo incessante de ideias torpes disseminadas na cultura, os envolvidos no debate público (cujo número se distendeu enormemente com as redes sociais, as quais nos imprimindo a falsa noção de que necessitamos ter opiniões sobre cada coisa existente no universo) se lançam numa tosca briga de torcidas; bastam a narrativa, a pose e a erística da esgrima de perdigotos... A lição de Sócrates (e sobretudo de Cristo) foi esquecida: diferente do genuíno conhecimento, a mera narrativa não exige de mim o compromisso moral de jamais negar a verdade com a qual me deparo; se a verdade não mais é louvada como conditio sine qua non de qualquer diálogo que não se pretenda inútil, não sobram razões para conversarmos acerca de rigorosamente nada, todas as perspectivas são válidas e nenhuma é objetivamente válida (!). Na esteira dos clássicos, podemos afirmar: esse cenário a um só tempo risível e macabro não é uma deturpação da democracia moderna, mas a expressão de uma deformidade inerente à própria. 

A instalação cultural do engodo relativista se mune de armas responsáveis por dessensibilizar as consciências e embotar as inteligências; surgem excrescências como o multiculturalismo – a pregação odienta e gnóstica do suicídio civilizacional – e a pós-verdade – tecnicamente, não seria a mentira e sim o desinteresse com respeito à distinção entre verdade e mentira –, que se trata afinal do bom e velho embuste idealista, um modo palatável de a mentira apresentar-se; novamente, “não interessa a realidade, mas o que se diz da realidade”. Os fatos são substituídos pelas emoções (que é o politicamente correto senão a necessidade permanente de mostrar pureza moral à turba?). Para essa ideologia linguística, gestada principalmente na França e na Inglaterra, a linguagem assume o papel de filosofia primeira, o discurso exclusivamente cria o real. É a usurpação da prerrogativa divina: Deus diz seu Fiat, e as coisas existem. Sereis como deuses. 

Contra Sócrates pesava a acusação caluniosa de Meleto, Ânito e Lícon: teria o filósofo “corrompido a juventude” e “introduzido novas divindades” na polis; era o pecado de impiedade. Isto refere outra lição do pensamento clássico, ainda mais fundamental, pois a corrupção da noção de verdade é inflamada pela perda desta: para os povos antigos, era impensável a expulsão do religioso da vida política. Ademais de ser uma virtude decorrente da justiça, a religião era uma virtude política, pois a honra devida aos deuses era o princípio de coesão social. Com a nefasta soberania moderna, o povo é fonte do poder político, de maneira que os seus arroubos se veem justificados, sendo ele mesmo o único juiz verdadeiro de suas próprias atitudes. Que esperar do ladrão que deve julgar-se a si mesmo? 

Ao asseverar a origem divina do poder político, a doutrina católica (que difere da doutrina protestante do “direito divino dos reis”), por exemplo, ao contrário do imaginado pelos críticos do “obscurantismo cristão”, impõe justamente limites aos mandatários. Se o poder emana de Deus, o governante age ilegitimamente caso fira a justiça e o bem comum – há balizas objetivas à sua conduta, diferentemente do verificado no abstratismo cínico dos parâmetros institucionais atuais. Não é a nossa Suprema Corte o exemplo mais acabado disso? 

Para fingir que suprem as deficiências do secularismo relativista, as democracias contemporâneas produzem arranjos malnascidos, imitações baratas e difusas das virtudes clássicas, chamando-os “valores”. Significam algo o amor, a paz e a irmandade laicos? Seria o sentimentalismo das novelas? A paz dos cemitérios e lixões repletos de crianças abortadas? A fraternidade de “irmãos sem pai” da Revolução Francesa? Não por acaso, a época que se jacta de ser a mais antagônica ao obscurantismo é a que deplora a ideia de verdade e a de reta razão; prega a tolerância e simultaneamente edifica o online shaming, a “cultura do cancelamento”. 

Evidentemente, enquanto degenera a necessidade de responder em todas as nossas ações perante o tribunal da consciência, onde aguarda o Justo Juiz – mais íntimo de nós do que somos de nós mesmos, pontuará Santo Agostinho, e única testemunha inescapável de nossos atos –, cresce vertiginosamente e em compensação o número de leis. 

Não basta, porém, o lamento, porquanto, observa Chesterton, diante do abismo, dar um passo atrás é progredir. Aprendamos.


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