Escravidão, racismo e o que nos atrapalha


O padre Vieira sentenciava que a morte é a mais esperada e a mais inesperada das coisas. É verdade. Quase o mesmo se pode dizer da maldade humana: a cada dia, novos e refinados exemplares de torpeza se somam ao rol das perversidades catalogadas. 

Entre as nossas muitas ideias imbecis, coube a alguma(s) mente(s) satanizada(s) conceber a noção de que, em virtude de diferenças fenotípicas (ou até alegadamente genotípicas), um indivíduo é superior a outro em dignidade original e uma raça deve imperar sobre outra. 

A explicação para o racismo é complexa. Basta mostrar aqui com Eric Voegelin em seu History of the Race Idea (1933) que o conceito de raça tal como o conhecemos provém da secularização ou imanentização do ideal de perfeição do “povo eleito” herdado da tradição cristã. Enquanto no cristianismo primitivo a eleição dizia respeito ao “parentesco” dos homens com o Homem-Deus Cristo e se referia ao destino eterno e à imortalidade da alma a gozar da plena felicidade na glória – numa palavra, ao reino do transcendente –, a visão moderna do homem “terrestrializou” esse anseio de perfeição, vazando-o nos moldes dum mecanicismo materialista; o corpo tornou-se uma simples máquina cavalgada por uma substância racional, até, progressivamente, seguindo o desenvolvimento do pensamento moderno, passar a inverter esta relação, “engolindo” a mente e determinando os contornos da potência racional. Por fim, chegou-se a confinar na corporeidade a própria concepção de pessoa. 

Era a entronização do corpo, ou melhor, de uma visão desfigurada do corpo (o corpo contra si mesmo). Dum salto chegamos à tragédia: a diversidade de raças revelava a superioridade original de umas sobre outras e explicava as suas diferenças de comportamentos. Também, a raça tornar-se-ia objeto de manipulação eugênica. 

Outro problema é o da escravidão. Ela está longe de ser fenômeno historicamente isolado no tempo e no espaço e de apenas um grupo sobre outro distinto: brancos escravizaram negros que foram antes escravizados por árabes; negros, por sua vez, escravizaram outros negros; asiáticos escravizaram asiáticos; europeus escravizaram europeus (a palavra “escravo” deriva justamente de “eslavo” em inglês, árabe e outras línguas europeias, pois brancos submeteram brancos eslavos por séculos antes que o primeiro africano fosse trazido para o hemisfério ocidental); africanos e europeus se escravizaram mutuamente. Nas Treze Colônias americanas havia mais escravos europeus que africanos. Segundo Thomas Sowell, quando a escravização dos brancos europeus passou a ser mais penosa, parte da massa de africanos escravos de outros africanos foi adquirida pelos europeus. Eclodiu em seguida a ideologia racista, mais um fruto podre da modernidade – leiam-se os trabalhos de Carus, Darwin, Galton, Gobineau, etc. – e uma das principais armas do imperialismo. Em suma, o racismo não explica a escravidão. 

Diferente do que se imagina, portanto, a escravização de negros por brancos não é sequer um décimo da história dessa prática vergonhosa. Ainda, poucos consideram, mas é a nossa a época com o maior número de escravos na história (inclua-se a emergência de novas formas de escravidão): só na Índia, há hoje entre 13 e 14 milhões. Enquanto o International Labour Organization estimou um minimum de 12,3 milhões de acorrentados no mundo em meados de 2008, o Global Slavery Index de 2014 mostrou a prática ainda correndo solta na Mauritânia, Haiti e em países como Nigéria, Etiópia e Congo, ou seja, temos cerca de 30 milhões de escravos em África, Ásia e (residualmente na) América Latina para exploração sexual, trabalho forçado em pedreiras e olarias ou servidão doméstica (cf. A Crime So Monstrous, de Benjamin Skinner). Por que o espanto? 

Porque, não obstante o Ocidente ter escravizado, foi o único a ter movimentos abolicionistas (sobre a insistência da Igreja em condenar o escravismo, recomendo o artigo do professor Ricardo da Costa intitulado A Igreja Católica e a escravidão), de modo que esse vexame se tornou praticamente inexistente. 

Se mesmo durante a era da escravidão, acrescenta Sowell, a maioria dos brancos não possuía escravos, e a despeito do fato de, a rigor, ser incompreensível alguém se desculpar pelo que outra pessoa fez, por que seus descendentes deveriam pagar pelos descendentes dos escravagistas? 

Trata-se de problema gravíssimo, mas, como vimos, tecnicamente diferente do problema racial. O caso George Floyd mobilizou numa onda antirracista multidões ao redor do mundo, embora tais pessoas não soubessem, como não sabemos, se Floyd foi mesmo vítima de racismo (inclusive, o livro War on Cops, da escritora americana Heather Mac Donald, desmonta a falácia sobre haver um suposto racismo sistêmico na polícia dos EUA), como parece estar descartada a hipótese de racismo no recente caso João Alberto, brutalmente assassinado no Carrefour de Porto Alegre. 

Prossigo repetindo que os justiceiros sociais e o politicamente correto só prejudicam o combate aos verdadeiros problemas, porque, ao propagar mentiras, tornando onipresentes doenças localizadas, invisibilizam, banalizam as chagas da sociedade. 

Recentemente, vi um apresentador de programa esportivo falar de racismo, no contexto do caso Floyd. No fim do comentário, arrematou que era branco, mas tinha uma “alma” de negro ou algo do gênero, adorava a cultura negra (pelo visto, dos EUA). Tudo bem, entendi perfeitamente o que quis dizer e não vi grande problema. Só não entendo os motivos de cair o mundo se ocorresse o inverso: um negro que apenas declarasse gosto pela “cultura dos brancos” certamente estaria liquidado, seria visto como quem introjetasse o racismo dos “caucasianos”. 

Ninguém em sã consciência negaria a existência do preconceito racial. Daí a imaginá-lo como uma epidemia – ou pensar o Brasil como sendo os Estados Unidos, ou ainda confundir características raciais (logo, naturais) com etnia (fenômeno cultural)... 

O melhor é que militantes indignados e demais apaixonados permaneçam fora da discussão. As vítimas agradecem.


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